Psicologia Feminina: Deusas Virgens
- Bruna Nozella

- 4 de nov.
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Texto retirado do papper "Artemis e a falácia da mulher masculinizada: uma leitura junguiana da psique
feminina" escrito por Bruna Nozella (fui eu mesma!) para o curso de Pós Graduação em Arteterapia,
A psicóloga junguiana Jean Shinoda Bolen (1990), em As Deusas e a Mulher destaca que, quando um bebê não é cuidado por um arquétipo materno, ou seja, quando não encontra no outro essa forma simbólica de sustentação, cresce desejando esse padrão. Esse exemplo mostra a força do arquétipo: ele não é apenas uma imagem mítica, mas um padrão instintivo e estruturante de comportamento.
Bolen sistematiza os arquétipos ou padrões de comportamento feminino a partir da mitologia das Deusas em categorias:
as Deusas Vulneráveis (Perséfone, Deméter, Hera), vinculadas aos papéis de filha, mãe e esposa, são as que mais sofrem e amadurecem por meio de relações.
As Deusas alquímicas (Afrodite), representa a transformação por meio do desejo, da criatividade e da potência erótica.
Por fim, as Deusas virgens (Artemis, Atena, Héstia), independentes, não definem sua identidade pela aprovação ou relação com os homens.
As deusas virgens representam a mulher que é “uma em si”. Elas não são “maculadas”/influenciadas pelo olhar masculino, não buscam a validação externa e, por isso, sua psique não se organiza em torno da dependência afetiva ou expectativas sociais machistas, patriarcais e religiosas.
Esse padrão feminino não se refere à virgindade sexual, mas a uma virgindade psicológica: a capacidade de viver guiada por seus próprios interesses, talentos e metas.

Entre as deusas virgens, Artémis é filha de Zeus e Leto, irmã gêmea de Apolo, descrita como a deusa da caça, da lua e das florestas, portadora da luz e guardiã das mulheres. É também a protetora da infância e, paradoxalmente, aquela que ajudou sua mãe a dar à luz, gesto que simboliza a mulher que “faz nascer” a própria maternidade da mãe, um traço poderoso em mulheres que se tornam pilares familiares desde cedo.
Ártemis carrega atributos múltiplos: é leoa pela coragem, javali pela destruição, ursa pela proteção. Representa a precisão do arco e da flecha, a disciplina da meta, a lógica da realização. Encanta-se com a solidão, contempla a vida, encontra na natureza um lar e uma escola. É irmã, competidora, caçadora e guardiã da liberdade feminina.
Em seu aspecto luminoso, aquilo que a psicologia Ártemis apresenta a sociedade, vê-se a mulher que valoriza sua autonomia, que busca excelência, que protege outras mulheres e que encontra sentido na realização do mundo exterior. Em sua sombra, aquilo que a mulher Artémis não conhece em si e sente vergonha, pode manifestar a dificuldade em cultivar vínculos íntimos.
Sua presença na psique revela que a independência feminina não é um sinal de masculinização ou de negação do homem, mas a expressão de um padrão arquetípico feminino legítimo. Nesse sentido, Ártemis desmonta a falácia contemporânea que acusa de “masculinizadas” as mulheres que priorizam sua autonomia. O que está em jogo não é a negação do feminino, mas a afirmação de uma de suas faces mais indomáveis.

A figura de Artemis encontra ressonância direta na vida de muitas mulheres contemporâneas:
No imaginário social, a mulher que dedica tempo integral à carreira, que escolhe a solidão como espaço fértil para sua criatividade ou que recusa padrões afetivos convencionais costuma ser rotulada como “trabalhadora demais” ou “masculinizada”.
Contudo, sob a ótica da Psicologia Analítica, esses traços revelam não uma deformação da feminilidade, mas um padrão de comportamento legítimo: a Ártemis que vive em cada psique.
Essas mulheres sabem mirar, traçar metas e perseguir objetivos. São movidas por um senso interno de direção e por um compromisso com sua própria liberdade, mesmo quando isso contraria expectativas sociais.
No mundo corporativo, esse arquétipo aparece nas chamadas workaholics, profissionais incansáveis que canalizam sua energia para a realização no espaço externo. Em contextos familiares e sociais, manifesta-se em mulheres que cuidam de si mesmas antes de se submeter às demandas alheias, rompendo com a narrativa de que o destino feminino se restringe ao matrimônio ou à maternidade. Na esfera afetiva, a psique de Artemis pode se expressar no celibato voluntário, na escolha pela independência ou na recusa a vínculos que comprometam sua autonomia.
Esse padrão psíquico não está isento de riscos. A mesma força que protege pode isolar; a disciplina que garante resultados pode endurecer; a autossuficiência pode se transformar em incapacidade de confiar ou se entregar.
É nesse ponto que a Psicologia Analítica propõe o trabalho de consciência:
reconhecer a persona (a máscara da eficiência e da independência),
confrontar a sombra (o isolamento, a dureza, o desprezo pelo vínculo)
e integrar esses opostos no processo de individuação.
Ao reconhecer que arquétipos habitam a psique em suas polaridades, Jung mostrou que forças como a agressividade, a autonomia e a assertividade não pertencem a um gênero, mas à totalidade humana. Nesse horizonte, o arquétipo de
Artemis revela-se fundamental: longe de indicar “masculinização”, sua presença na vida das mulheres contemporâneas simboliza a força da independência, da clareza de metas, da proteção e da liberdade interior.
As mulheres que hoje são rotuladas como “frias”, “workaholics” ou “solitárias” não expressam uma deformação do feminino, mas atualizam a psique de Artemis. Sua persona manifesta disciplina e foco; sua sombra alerta para os riscos do isolamento; seus complexos apontam para a autossuficiência e a rivalidade. Mas é justamente no trabalho de individuação que a energia da deusa encontra equilíbrio: a caçadora se integra ao todo, não para negar vínculos, mas para vivê-los de forma autêntica, sem submissão.
